A saúde sexual na esclerose múltipla

Entenda as alterações na vida sexual recorrentes entre as pessoas que convivem com a EM

A saúde sexual na esclerose múltipla 

A saúde sexual é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um bem-estar físico, emocional, mental e social da sexualidade. 

Cerca de 40 a 80% das mulheres e 50 a 90% dos homens com Esclerose Múltipla (EM) apresentam algum tipo de disfunção sexual (DS), e a maioria deles tem muita dificuldade em comunicar seus médicos e conversar sobre o assunto.

Existem diversos fatores que interferem e acabam dificultando essa comunicação:

Pacientes: 

  1. Prevalência de outros sintomas neurológicos e dúvidas sobre eles; 

  2. Presença de familiares e/ou amigos nas consultas;

  3. Tabu social sobre a sexualidade (religioso, cultural);

  4. Não serem questionados pelo médico sobre sua vida sexual. 

Médicos:

  1. A maioria relata não saber lidar com o assunto;

  2. Dificuldade no questionamento, quando estão na presença de familiares e/ou amigos dos pacientes;

  3. A falta de tempo nas consultas.

É importante ressaltar que o tratamento das disfunções sexuais dos pacientes com EM não deve ser restrito aos sintomas e queixas, mas também incluir a expectativa do mesmo. Em um estudo epidemiológico, prospectivo, publicado pela Sexual Medicine em 2022 (Screiber-Bontemps A et. al), a aplicação de questionários sobre a disfunção sexual em mulheres, com idade média de 47 anos e 14 anos de diagnóstico da esclerose múltipla verificou que 59% das entrevistadas apresentavam dificuldades sexuais e 95% declararam que suas dificuldades estavam relacionadas à EM.

Os principais motivos/expectativas que levaram à busca de tratamento para a DS envolviam a melhora do desejo sexual, da excitação e a incapacidade de atingir orgasmos, bem como, melhorar a autoestima, conforme a figura abaixo:

As alterações sexuais observadas são complexas e variáveis, apresentando componentes anatômico, psicossocial e comportamental. 47% das mulheres na população geral apresentam disfunções sexuais, e, naquelas com EM, essa porcentagem varia de 40 a 74%. Elas têm, predominantemente, redução na lubrificação vaginal, alterações no clitóris e dor no intercurso sexual.

No sexo masculino, ocorre, mais frequentemente, a dificuldade na ereção e ejaculação. Tanto os homens quanto as mulheres têm como queixa frequente a redução na libido, sendo que nas mulheres está relacionada, principalmente, ao medo de rejeição do parceiro/a e de não satisfazê-lo/a, a baixa autoestima e a própria EM. A falta de comunicação entre as pacientes e o/a parceiro/a é um fator crucial no comprometimento de um bom relacionamento sexual. 

O casal precisa aprender a conviver com a EM, e as mulheres a redescobrir seu próprio corpo e o do/a parceiro/a, restabelecer a intimidade e harmonia sexual, buscando um novo equilíbrio.

É essencial, também, que os médicos abordem essa necessidade e desejo das pacientes para uma melhora na qualidade de vida. A comunicação entre a paciente e o profissional de saúde é muito importante para a boa evolução e cuidado, mas levar em consideração não somente os sintomas da EM e das disfunções sexuais, assim como a expectativa de cada paciente. 

O médico deve ter a sensibilidade de saber lidar com a fragilidade emocional, que decorre não só dos sintomas, mas também da própria existência da EM. O tratamento deve ser sempre individualizado e direcionado às queixas e aos anseios de cada uma, sendo sempre amplo e abrangente.

As disfunções sexuais, de acordo com Sparaco M e Bonavita S, 2022, podem ser divididas em causas primárias, secundárias e terciárias.

Estão relacionadas diretamente ao dano neurológico causado pelas lesões desmielinizantes, como as alterações de sensibilidade genitais, redução no desejo sexual e disfunção orgásmica. As alterações estruturais afetam diretamente a resposta sexual.

As alterações orgásmicas podem acometer 37,1% das mulheres e 36% têm redução na lubrificação vaginal. A diminuição do desejo e a alteração na lubrificação podem levar a dor na relação sexual (dispareunia), que interfere diretamente na excitação e nas causas terciárias da DS, como aumento de depressão e ansiedade.

Muitas pacientes se beneficiam com uso de lubrificantes vaginais, dispositivos sexuais e acompanhamento multidisciplinar para melhora na lubrificação e no orgasmo.

As lesões medulares, cervicais e torácicas podem causar sintomas urinários e intestinais, que também interferem na disfunção sexual e serão abordados mais abaixo.

 As disfunções sexuais no sexo masculino de causa primária incluem alterações sensitivas genitais, alterações de ereção e também ejaculatórias e, na maioria dos pacientes, se observa associação de causas orgânicas e não orgânicas.

De 50 a 85% dos pacientes, podem apresentar dificuldade na ereção, que incluem a ereção na masturbação bem como manter a ereção durante o intercurso sexual. (Prévinaire JG et. al, 2014).

Mais de 50% dos homens podem apresentar alterações na ejaculação, sendo mais de 60% tem ejaculação precoce; 33%, ejaculação retrógrada ou ausência de ejaculação; e mais de 50%, apresentam um retardo na ejaculação. Além disso, até 50 % deles se queixam de dificuldade em atingir o orgasmo.

Elas decorrem das alterações físicas da EM como espasticidade, dor e fadiga.

A fadiga é uma queixa frequentemente associada à EM, ocorrendo em mais de 20% dos casos e definida como a dificuldade em iniciar ou sustentar um esforço voluntário, o que pode levar à falta de motivação para se envolver em várias atividades, pois interfere diretamente na qualidade de vida dos pacientes, no seu rendimento, humor e nas queixas sexuais.

Em até 30% dos casos, a DS está relacionada à dificuldade de movimento, fraqueza muscular e mudança na posição corporal, interferindo no intercurso sexual e gerando medo em não conseguir satisfazer seu/sua parceiro/a, redução na lubrificação e dificuldade em atingir o orgasmo. Várias mulheres apresentam diminuição na autoestima e deixam de se sentir atraentes por causa de suas dificuldades motoras.

Muitas pacientes apresentam aumento da espasticidade durante a atividade sexual, ocasionando mais dor e, consequentemente, reduzindo mais a libido e excitação.

Assim como no sexo feminino, os pacientes apresentam disfunções sexuais decorrentes de causas secundárias, sendo que a espasticidade e a dor interferem na ereção, bem como na libido. Observa-se que até 39% deles se queixam de redução na libido.

   

Em um estudo realizado em 2019 pela Faculdade de Medicina do ABC, observou-se que a disfunção sexual é uma queixa frequente entre os pacientes do sexo masculino com EM, porém pouco valorizada ou abordada. De 50 a 90 % dos homens, apresentavam alguma queixa sexual que afetava diretamente sua qualidade de vida, principalmente por serem pacientes jovens com vida sexual ativa -  48,7% apresentavam disfunção orgásmica grave; 33,3%, redução moderada no desejo sexual; e 59%, relataram insatisfação moderada e grave com o intercurso sexual. (vide figura 2)

Elas estão relacionadas aos aspectos psicológicos, sociais, culturais e religiosos da sexualidade.

A falta de diálogo e informação aumentam o tabu sobre a sexualidade e quando ocorre algum transtorno relacionado a ela, é mais difícil ainda a comunicação. 

Os problemas psicológicos relacionados às doenças crônicas, como a esclerose múltipla, levam às disfunções sexuais, sendo que 30% dos pacientes desenvolvem depressão e/ou ansiedade e  o próprio uso de antidepressivos pode ter como efeito colateral a redução da libido, do desejo sexual e da lubrificação vaginal.

Os pacientes do sexo masculino podem apresentar disfunção erétil, alterações na ejaculação e libido, devido ao uso de medicamentos para tratametno dos sintomas da EM. Os antidepressivos e inidores seletivos da recaptação de serotonina podem causar retardo ou ausência de ejaculação, além de interferir na libido e,  consequentemente, na ereção do paciente. 

O uso de baclofeno intratecal para controle da espasticidade está relacionado às alterações na ejaculação desses pacientes.

Todos esses aspectos devem ser discutidos com seu médico e abordados para que possam ser conduzidos da melhor maneira possível e, assim, trazer melhorias na qualidade de vida. Além dos sintomas acima descritos, as alterações urinárias e intestinais têm um importante impacto na saúde mental e sexual dos pacientes, tanto em mulheres quanto em homens. Confira o texto abaixo:

Os sintomas urinários e intestinais que as pacientes com esclerose múltipla apresentam afetam de maneira direta a sua sexualidade e a sua qualidade de vida, os quais devem ser abordados e tratados. Em muitos casos, o neurologista pode recorrer ao urologista e ginecologista para complementarem o tratamento e cuidado das pacientes.

Um terço dos pacientes com EM apresentam disfunção do assoalho pélvico, sendo que 41% são alterações na bexiga urinária; 30%, intestinais; e 42%, sexuais.

Os distúrbios urinários são três vezes mais comuns nos pacientes com EM do que na população geral e são observados, com maior frequência, a urgência, a incontinência e a urgeincontinência urinária (esses podendo afetar 37 a 99% dos pacientes). Pode ocorrer uma hiperreflexia (aumento do reflexo), hipocontratilidade (diminuição na contração) ou dissinergia (falta de coordenação) entre o detrusor (músculo da bexiga) e o esfíncter - as lesões na medula torácica e cervical podem ser a causa dessas alterações.

Existem exames complementares que auxiliam no diagnóstico da bexiga neurogênica, a exemplo do teste urodinâmico, da citometria e do ultrassom de bexiga e vias urinárias com avaliação do resíduo pós-miccional. Todos são exames complementares e devem ser indicados pelo seu médico, conforme a necessidade.

Os sintomas urinários obstrutivos, como retenção urinária e resíduo pós-miccional, podem ocorrer em 34 a 79% dos pacientes e, de 50 a 60% dos casos podem ter a bexiga reativa e os distúrbios miccionais associados. O diagnóstico adequado do tipo de bexiga neurogênica é importante para o início de um tratamento precoce e específico.

Além do desconforto decorrente da bexiga neurogênica, seja ela qual for, as alterações urinárias aumentam o risco de infecção do trato urinário, e as infecções recorrentes podem levar à piora nos sintomas neurológicos dos pacientes, à exacerbação na fadiga, além às alterações renais.

Além das alterações urinárias, muitos pacientes apresentam distúrbios intestinais que podem variar entre constipação (17 a 94%), incontinência fecal (1 a 69%) ou as duas alterações associadas (6 a 52%). Essa perda de fezes colabora para a ocorrência de infecções urinárias de repetição e piora dos sintomas da EM. 

A manometria anorretal é um exame auxiliar no diagnóstico das alterações na musculatura anal desses pacientes e ajuda no diagnóstico diferencial de outras causas. A resposta motora do nervo pudendo (nervo responsável pela sensibilideade e motricidade do períneo, esfíncter anal externo, esfíncter uretral externo, genitália e uretra), avaliada pela manometria anal, encontra-se normal em pacientes com EM, diferente daqueles com incontinência fecal por outras causas.

Tratamento

É muito importante ressaltar que, além dos tratamentos medicamentosos, o exercício físico e os exercícios de assoalho pélvico ajudam a melhorar os sintomas dos pacientes, agindo na redução de quadros depressivos, fadiga, dores, distúrbios do sono, ansiedade, alterações urinárias e intestinais, que afetam a qualidade de vida e as queixas sexuais dos pacientes.

Não existe um protocolo específico, porém estudos avaliam que o exercício em associação à psicoterapia trazem muito benefício aos pacientes. Existem poucos estudos avaliando os tratamentos medicamentosos e não medicamentosos na melhora dos distúrbios sexuais. A revisão publicada em 2022, na Neurological Science, avaliou benefícios do uso de medicamentos orais, da toxina botulínica no detrusor, exercícios físicos e de assoalho pélvico, dispositivos sexuais e lubrificantes na melhora dos sintomas sexuais, bem como acompanhamento psicológico e cuidados com a saúde mental.

O exercício de assoalho pélvico pode ser associado também a outras técnicas como o biofeedback (aparelho que capta informação da musculatura do assoalho pélvico, transforma em estímulos sonoros e visuais, melhorando a contração ativa do músculo pelo paciente), estimulação elétrica muscular intravaginal, estimulação transcutânea do nervo tibial e eletromiografia. 

Existem também técnicas mais invasivas como cateterismo intermitente (sonda vesical), neuromodulação sacral e uso de toxina botulínica, mas lembre-se, sempre, que cada tratamento é individualizado, e deve ser avaliado pelo seu médico e direcionado às suas queixas.

Assim como no sexo feminino, os pacientes com alterações urinárias, intestinais e sexuais também se beneficiam com a terapia multidisciplinar queincluem exercícios físicos, psicoterapia, terapia cognitiva comportamental e terapia focada no suporte emocional. A maioria desses pacientes com impotência e dificuldade na manutenção da ereção tem piora dos sintomas, devido ao quadro de depressão e ansiedade. Além disso, o uso de medicamentos específicos pode auxiliar na melhora e na confiança dos pacientes.

A disfunção sexual é multifatorial e, por isso, é importante que se valorize todas as queixas, alterações físicas e psicológicas apresentadas pelos pacientes, bem como seus desejos e expectativas. O acompanhamento multidisciplinar é essencial para a melhora na qualidade de vida, incluindo fisioterapia, psicologia, urologia e ginecologia.

Lembre-se que é muito importante ter um diálogo aberto com o seu neurologista e relatar qualquer sintoma que esteja te incomodando, somente assim ele poderá indicar o melhor tratamento para que você tenha melhor qualidade de vida.


Conteúdo elaborado pela Dra. Mirella Fazzito (CRM 116887). Neuroimunologista; Neurologista do hospital Sírio Libanês e neuroimunologista do Imuno Brasil e membro do.

Bibliografia 

  1. Sparaco M and Bonavita S, Pelvic Floor Dysfunctions and Their Rehabilitation in Multiple Sclerosis, J Clin Med 2022, 11, 1941.

  2. Screiber-Bontemps A et al, Sexual Dysfunction in Women with MS: Expectations Regarding Treatment and Information and Utility of the SEA-MS-F Questionnaire. Sexual Medicine 2022;10:100502.

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  5. Giannopapas V et al. Sexual Dysfunction Therapeutic approaches in patients with Multiple Sclerosis: a systematic review. Neurological Sciences 2022;44:873-880.

  6. Bientinesi R et al.Neurologic Urinary Incontinence, Lower Urinary Tract Symptoms and Sexual Dysfunctions in Multiple Sclerosis: Expert Opinions Based on the Review of Current Evidences - Review. j Clin Med 2022, 11, 6572.

  7. Tomé ALF et al. Lower urinary tract symptons and sexual dysfunction in men with Multiple Sclerosis. Clinics 2019; 74:e713.

  8. Prévinaire JG et al. Sexual disorders in men with multiple sclerosis: evaluation and management. Annals of Physical and Rehabilitation Medicine, volume 57, 2014, 329-33.

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